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Consagração da criatura

Elisa Lucinda

Filho,
igualzinho à minha poesia
você nunca foi meu órgão
A arte é constante e me habita a hora em que ela quer e a hora que eu deixo
Mas não me existe combinada, não há contratos nem despejos
Você tem intimidade com meus interiores, com meus departamentos
Você é o argumento contra mim e a meu favor
Me trai, porque conhece o meu avesso,
Me enobrece, porque me tornou poderosa.
Capaz de prosseguir com essa invenção chamada humanidade
Você é a barbaridade de ter feito a minha barriga crescer, meu corpo zunir, abrir, escancarar pra você sair de onde eu nunca pus sequer os pés, as mãos, da casa em que vivo e habito sem nunca ter entrado porque moro fora de mim.

O que faz de seu Édipo eficiência e de seu abuso, cultura
É essa estrutura feita de mim sem que eu tenha em ti o mesmo acesso
Por isso a criatura é mais que o criador.
E você, que saiu por onde entrou como ocorre com o poema,
Tem seu passaporte carimbado para todos os estados da minha alma, de meu espírito
Você que é onírico, sábio, vassalo, me tiraniza e perde a fala, o fôlego, o falo,
Me organiza e ganha o futuro, e ainda segura o jogo duro de viver independente de minha respiração.
Espião de meus bastidores, olhou minhas entranhas enquanto virava ser humano
Quieto, quieto dentro de mim como as palavras antes de serem poesia
Mas fui apenas uma pensão, uma besteira
Ou um hotel cinco estrelas
Ou um amniótico colchão
Hoje saído dessa embalagem, me olha como miragem
De parecer tão próprio, tão seu...
Me olha como árvore, ziguezagueia e olha pro que eu fui
Passageira semente, me olha como gente que já me viu por dentro,
Vasculhou meu plasma, minhas gavetas, me deixou pasma, coroou minha buceta,
E sabe meu segredo.
Me olha elegante e vestido.
E se sente despido ao saber que o olho de minha coxia também te viu virar varão,
Deixar de ser óvulo, indefinição, projeto, embrião.
E haverá sempre um leite materno escorrendo pelo seu terno
Como mirra, benção, distração
Como birra, alimento, maldição
Maior que em mim, melhor que mim.
Está pronto e feito como o meu melhor poema.
Nem branco, nem preto, nem real, nem ilusão.
Um grande amuleto da palavra são.


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