Filho
Igualzinho à minha poesia
Você nunca foi meu órgão
A arte é constante e me habita a hora em que ela quer e a hora que eu deixo
Mas não me existe combinada, não há contratos nem despejos
Você tem intimidade com meus interiores, com meus departamentos
Você é o argumento contra mim e a meu favor
Me trai, porque conhece o meu avesso
Me enobrece, porque me tornou poderosa
Capaz de prosseguir com essa invenção chamada humanidade
Você é a barbaridade de ter feito a minha barriga crescer
Meu corpo zunir, abrir
Escancarar pra você sair de onde eu nunca pus sequer os pés, as mãos
Da casa em que vivo e habito sem nunca ter entrado porque moro fora de mim
O que faz de seu Édipo eficiência e de seu abuso, cultura
É essa estrutura feita de mim sem que eu tenha em ti o mesmo acesso
Por isso a criatura é mais que o criador
E você, que saiu por onde entrou como ocorre com o poema
Tem seu passaporte carimbado para todos os estados da minha alma, de meu espírito
Você que é onírico, sábio, vassalo, me tiraniza e perde a fala, o fôlego, o falo
Me organiza e ganha o futuro
E ainda segura o jogo duro de viver independente de minha respiração
Espião de meus bastidores, olhou minhas entranhas enquanto virava ser humano
Quieto, quieto dentro de mim como as palavras antes de serem poesia
Mas fui apenas uma pensão, uma besteira
Ou um hotel cinco estrelas
Ou um amniótico colchão
Hoje saído dessa embalagem, me olha como miragem
De parecer tão próprio, tão seu
Me olha como árvore, ziguezagueia e olha pro que eu fui
Passageira semente, me olha como gente que já me viu por dentro
Vasculhou meu plasma, minhas gavetas, me deixou pasma, coroou minha buceta
E sabe meu segredo
Me olha elegante e vestido
E se sente despido ao saber que o olho de minha coxia também te viu virar varão
Deixar de ser óvulo, indefinição, projeto, embrião
E haverá sempre um leite materno escorrendo pelo seu terno
Como mirra, bênção, distração
Como birra, alimento, maldição
Maior que em mim, melhor que mim
Está pronto e feito como o meu melhor poema
Nem branco, nem preto, nem real, nem ilusão
Um grande amuleto da palavra são